Os pilares da Reforma Protestante 2
Infelizmente no mundo pós-moderno, onde o relativismo cresce em proporções alarmantes, em detrimento de um claro “assim diz o Senhor”, faz-se necessário reavivar em nossa memória os princípios que abalaram e transformaram o mundo, especialmente agora, quando tantas forças tentam subvertê-los e neutralizá-los. Os cinco pilares sobre os quais foi construído e se mantém o edifício da Reforma Protestante são também conhecidos como “Os Cinco Solas”: Sola Scriptura (Somente a Escritura); Sola Fide (Somente por meio da fé); Solus Christus (Somente por meio de Cristo); Sola Gratia (Somente por meio da Graça); e Soli Deo Gloria (Glória somente a Deus). Iremos a cada semana refletir sobre esses cinco pilares.
Sola Fide (Somente por meio da fé)
Aos 21 anos, em 1505, sob forte influência dos pais, Martinho Lutero inscreveu-se em Direito na Universidade de Erfurt, onde havia concluído o mestrado em Filosofia. Mas após uma enorme tempestade com descargas elétricas que quase o vitimou, um raio caiu bem próximo onde caminhava. Isso o levou a abandonar a faculdade para ingressar na ordem dos Agostinianos de Frankfurt, em 17 de julho do mesmo ano. “O jovem Martinho Lutero dedicou-se por completo à vida no mosteiro, empenhando-se em realizar boas obras a fim de agradar a Deus e servir ao próximo através de orações por suas almas. Dedicou-se intensamente à meditação, às autoflagelações, às muitas horas de oração diárias, às peregrinações e à confissão. Quanto mais tentava ser agradável ao Senhor, mais se dava conta de seus pecados.”
“Achara uma Bíblia acorrentada à parede do convento, e a ela muitas vezes recorria. Aprofundando-se suas convicções de pecado, procurou pelas próprias obras obter perdão e paz. Levava vida austera, esforçando-se por meio de jejuns, vigílias e penitências para dominar os males de sua natureza, dos quais a vida monástica não o libertava. Não recuava ante sacrifício algum pelo qual pudesse atingir a pureza de coração que o habilitaria a ser aprovado por Deus. ‘Eu era na verdade um monge piedoso’, disse, mais tarde, ‘e seguia as regras de minha ordem mais estritamente do que possa exprimir. Se fosse possível a um monge obter o Céu por suas obras monásticas, eu teria certamente direito a ele. [...] Se eu tivesse continuado por mais tempo, teria levado minhas mortificações até à própria morte’.”
Alguns anos mais tarde, como um fiel católico, Lutero decidiu visitar Roma e o papa. Cumprindo um dos propósitos de sua viagem, como um ato de indulgência, Lutero estava subindo de joelhos os degraus da “escada de Pilatos”, quando ouviu uma voz a dizer-lhe: “O justo viverá da fé”. A partir daquele momento, quando se levantou e afastou-se envergonhado do lugar, o texto de Romanos 1:17 nunca mais saiu de sua mente, e tornou-se o versículo chave de seu entendimento do tão grande assunto da justificação pela fé, e do princípio Sola Fide.
Lutero e todos os demais reformadores do século 16, estudando Romanos 1:17, onde se lê: “Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá pela fé”, entenderam claramente que a justiça de Deus mencionada no versículo é uma justiça alheia [externa], isto é, a justiça que foi desenvolvida durante os 33 anos de obediência perfeita de Cristo, e que é imputada [concedida ou atribuída] gratuitamente ao pecador. Portanto, para os reformadores, justificar é o ato da livre graça de Deus de declarar e considerar o pecador justo com base no princípio da transferência e substituição ao invés do princípio da transformação.
Ou seja, justificar é sempre considerar o pecador justo, e nunca torná-lo justo, como defendia o catolicismo. “A teologia luterana diz ainda que a ‘justiça concedida ao pecador não é sua própria, produzida por ele mesmo, mas uma justiça que vem de fora, pertencente a Jesus Cristo’. A justiça não é uma qualidade do homem. Ela consiste antes em ser justo somente através da imputação [concessão] graciosa da justiça de Cristo, isto é, uma justiça ‘fora’ do homem. Para o luteranismo, a fé tem um papel muito diferente, sendo ela preponderante na justificação.
A fé que justifica, contudo, não é um mero conhecimento histórico, mas uma aceitação firme da oferta de Deus de prometer o perdão dos pecados e a justificação. [...] Fé é aquela adoração que recebe as bênçãos que são oferecidas por Deus.” Lutero também declarou: “Pela fé em Cristo, portanto, a justiça de Cristo se torna nossa justiça, e tudo o que é dEle passa a ser nosso; sim, Ele mesmo Se torna nosso. Ela é concedida em lugar da justiça original, perdida em Adão, e realiza [...] muito mais do que aquela justiça original teria conseguido realizar. Assim se compreende aquela afirmação de Salmos 31:1, ‘em Ti, Senhor, depositei minha esperança; não seja eu jamais envergonhado; livra-me por Tua justiça’. Ele não diz ‘por minha’, mas ‘por Tua’, isto é, pela justiça de Cristo, meu Deus, que foi feita nossa pela fé, pela graça, pela misericórdia de Deus. Em muitos lugares dos Salmos ela é chamada de ‘obra do Senhor’, ‘confissão’, ‘força de Deus’, ‘misericórdia’, ‘verdade’, ‘justiça’. Tudo isso são designações para a fé em Cristo; sim, para a justiça que está em Cristo. Por essa razão, o apóstolo ousa dizer em Gálatas 2:20, ‘já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim’.”
“Calvino seguiu os passos dos reformadores da primeira geração, como Lutero, Melâncton, Oecolampadius, Zwínglio, no aspecto forense da justificação. Reid disse que “semelhantemente aos outros reformadores, Calvino foi um advogado que pensava muito em termos forenses”. Calvino diz que ‘justificado pela fé é aquele que, excluído da justiça das obras, agarra-se à justiça de Cristo por meio da fé, e vestido com ela, aparece diante de Deus não como um pecador, mas como um homem justo’. A justificação, portanto, segundo Calvino, ‘acontece quando Deus declara o pecador justo; ele é aceito e perdoado unicamente por causa de Cristo’. Este é o seu conceito forense de justificação.”
No artigo IV da Confissão de Augsburgo, preparada por Phillip Melâncton, e confirmada pelos príncipes que haviam aderido à Reforma, em 25 de junho de 1530, encontra-se a seguinte confissão de fé: “Ensina-se também que não podemos alcançar remissão do pecado e justiça diante de Deus por mérito, obra e satisfação nossos, porém que recebemos remissão do pecado e nos tornamos justos diante de Deus pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé, quando cremos que Cristo padeceu por nós e que por Sua causa os pecados nos são perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna. Pois Deus quer considerar e atribuir essa fé como justiça diante de Si, conforme diz Paulo em Romanos, capítulos 3 e 4.”
Os reformadores entendiam a justificação como sendo somente um ato forense que acontece quando Deus, no Seu Tribunal, declara o pecador justo através da imputação [concessão] graciosa da justiça de Cristo, isto é, uma justiça “fora do homem”. Se bem que também entendesse a justificação como um ato forense, Ellen G. White discordou levemente dos reformadores quando escreveu: “O perdão de Deus não é meramente um ato judicial [forense] pelo qual Ele nos livra da condenação. É não apenas perdão pelo pecado, mas livramento do pecado. É o transbordamento de amor redentor que transforma o coração.” Nesse texto, E. G. White não discorda que a justificação ou perdão de Deus seja um ato forense, mas ela discorda que seja apenas forense.
Ela entendeu que a consequência imediata do perdão é o livramento do pecado ou a santificação, e que a justificação estava atrelada à santificação por uma lei de causa e efeito. Se bem que a justificação não esteja fundamentada nos resultados do perdão na vida do crente, e sim na imputada justiça de Cristo ao pecador arrependido, não se pode negar que os efeitos da justificação sejam vistos numa vida de vitória sobre o pecado, e que esses efeitos comprovam definitivamente aos outros seres humanos que aquele indivíduo foi, de fato, justificado.
Apesar dessa diferença, não resta dúvida de que Ellen G. White, à semelhança dos reformadores, também teve uma clara compreensão do conceito “somente pela fé” ou Sola Fide. A declaração abaixo revela o quanto ela estava em sintonia com esse princípio que era o cerne da Reforma: “Justiça é obediência à Lei. A Lei requer justiça, e esta o pecador deve a ela; mas ele é incapaz de apresentá-la. A única maneira em que pode alcançar a justiça é por meio da fé. Pela fé ele pode apresentar a Deus os méritos de Cristo, e o Senhor lança a obediência de Seu Filho a crédito do pecador. A justiça de Cristo é aceita em lugar do fracasso do homem, e Deus recebe, perdoa, justifica a alma arrependida e crente, trata-a como se fosse justa, e ama-a da mesma forma que ama Seu Filho.”
Revista Observador da Verdade, 2017.